HomeHistóriaPraça da Bandeira: História, sonho, decadência e prostituição

Praça da Bandeira: História, sonho, decadência e prostituição

A praça e aquela seringueira têm o mesmo destino: as duas estão morrendo juntas

Por Leonildo Rosas

Ela está no coração de Rio Branco. É um coração triste. Quase não bate. Pulsa fraco, agoniza e continua insistindo em querer viver. Assim é a Praça da Bandeira, onde cerca de 500 pessoas trabalham e vendem todo tipo de coisa para sobreviver, apesar de o local sangrar de morte.

Andar pelas vielas e becos do centro comercial é passear um pouco na história do comércio do Acre. É um triste passeio. Dezenas de estabelecimentos faliram. Os corredores sujos e escuros reforçam o aspecto de abandono. Como que combinando com a paisagem, os comerciantes remanescentes carregam semblantes tristes. Lembram dos tempos em que a economia era pungente e as pessoas lotavam as lojas para comprar roupas, sapatos, materiais elétricos e eletrônicos, armarinhos, carnes, verduras e todos os tipos de gêneros.

As lojas que ainda resistem são, na maioria, mal conservadas e seus proprietários não se aventuram em reformá-las. Não sabem o que o governo do Estado e a prefeitura reservam para o local. Uns esperam por melhores dias. Outros não esperam mais nada. Cansaram de promessas dos políticos.

“O teto da minha loja está caindo, mas não faço reforma porque não sei o que farão com a gente”, explica Maria do Carmo Cahú de Oliveira, que vende até linha a retalho.

Tanta desesperança é justificável. O Corpo de Bombeiros diagnosticou que a praça é de risco total e uma bomba armada para explodir. A prefeitura não expede alvará para funcionamento. Os comerciantes acabam virando “clandestinos” com a conivência das autoridades.

Para explicar a decadência, cada um tem seu diagnóstico. O que beira o consenso é a transferência do ponto final dos ônibus para o terminal urbano, deslocando a maioria dos clientes para as imediações do mercado Elias Mansour.

Apesar de ser parte de uma crônica de morte anunciada, a Praça da Bandeira ainda se constitui num grande shopping center dos pobres. Tem de tudo um pouco: desde a comercialização de alimentos à comercialização do corpo pelas dezenas de prostitutas que ali fazem ponto.

Muito estão no local há mais de 30 anos. Outros nasceram e se criaram nos corredores do centro comercial. É o caso, por exemplo, de Petronilo Lopes Filho, o Pelé.

Pelé nasceu na pensão da mãe dentro da praça, em outubro de 1974. Foi apanhado por uma parteira. O pai, um sapateiro baiano, ensinou-lhe o ofício desde a infância.

Aplicado, não só herdou a profissão do pai, como se auto-intitula o “médico dos calçados”. Pelé não conserta apenas sapatos, também os fabrica sob encomenda. Como se tudo fosse ligado por laços genéticos, sonha em deixar como herança para os três filhos a mesma profissão que aprendeu com o pai. “Estou querendo trazer minha filha mais velha para começar a aprender. Ela tem 11 anos. Só o estudo não é garantia”, admite.

Emocionado, diz que a Praça da Bandeira é sua vida. Para ele, o centro comercial está abandonado e falido porque falta respeito do governo e da prefeitura com as pessoas que dependem do local para sobreviver. “Não há um político no Acre que não tenha prometido revitalizá-la.”

Mas, enquanto as promessas dos políticos não se concretizam, ele reclama de ver o berço da sua infância se deteriorar a cada momento, olha para uma seringueira centenária localizada em frente à sua oficina de sapato e arremata: “A praça e aquela árvore têm o mesmo destino: as duas estão morrendo juntas”.

Prostituição e boêmia são lucro certo

Maria de Nazaré Teixeira, 40, foi casada durante 11 anos. Teve uma filha. Separada do marido, passou a freqüentar a Praça da Bandeira para tomar cerveja com amigos. Acabou tendo que vender o corpo para se manter. Faz ponto no local há dez anos.

Ela é apenas uma das mais de 70 mulheres que trabalham em seis pontos de prostituição no lugar. São de todas as idades e cobram em média R$ 20 por alguns momentos de prazer efêmero. São as únicas comerciantes que têm lucro certo todos os dias. Chova ou faça sol.

O preço não é constante, oscila de acordo com as regras de mercado. Em época de pagamento dos peões de fazenda e do funcionalismo público, a tabela é majorada: as moças chegam a receber R$ 40. E, embora a concorrência seja acirrada, não há brigas. Cada uma respeita a área de atuação da outra, num código de ética sem papel escrito.

Para manter relações sexuais com os clientes, elas não precisam sair da área da praça. Os proprietários de bares e outros tipos de comércio dispõem de quartos para atender as necessidades dos casais. Cobram R$ 5 para os quartos simples e R$ 10 para os que têm ar-condicionado e videocassete. O movimento é intenso durante todo o dia e se intensifica após as 11 horas.

A maioria das mulheres bebe e se droga nos bares e bocas-de-fumo existentes na beira do barranco do rio Acre. Alguns boêmios tocam violão e cantam músicas quase sempre carregadas de romantismo.

Enquanto ouve o violeiro cantando Zezé Di Camargo e Luciano, Maria Teixeira confessa que está cansada da vida que leva. É uma das mais antigas em atividade. Amigas da sua época casaram ou “viraram crentes”, conforme ela mesmo afirma. “É difícil sair dessa vida”, resigna-se.

A dificuldade começa para conseguir um emprego. A falta de qualificação profissional a obriga a continuar na prostituição, embora sonhe em casar e tornar-se evangélica, a exemplo da sua filha e de algumas antigas colegas de profissão.

Enquanto a possibilidade de mudança não vem, ela continua tocando a vida competindo com as mais novas. “Tem gente que prefere as ‘coroas’. Por isso garanto minha freguesia.”

Se Maria Teixeira mostra cansaço, o mesmo não se pode dizer de Elisângela Ferreira. Com 22 anos, está na prostituição há cinco. Com dentes de ouro que fazem reluzir seu sorriso no sol, ela garante que está no ramo porque gosta e sente prazer. “Eu gozo”, revela, sem meias-palavras.

“Aqui parece um deserto do Saara”

Meio-dia. Rafael Francisco dos Santos, 68, dorme tranqüilo com a cabeça em cima de um balcão de madeira de lei comprado há mais de 30 anos. É sexta-feira e a caixa registradora que o acompanha desde 1968 ainda não tinha registrado um único real durante toda a semana. “Nos anos bons, coloquei muito dinheiro dentro desta caixa” relembra.

Cearense, Rafael chegou ao Acre em 1959. Viajou 20 dias e 20 noites no navio Benjamin, vindo de Belém do Pará. Desde então, abriu um ponto na Praça da Bandeira. Saiu do local na década de 60 durante sete anos. Instalou-se no Segundo Distrito. Voltou depois que o então governador Jorge Kalume construiu a ponte metálica. “Lá ficou ruim de mais”.

O “ruim” daquela época hoje é comparado ao paraíso. Segundo ele, mudou tudo nos últimos anos. As pessoas não têm coragem de entrar na praça e o local “parece um deserto do Saara”.

Sempre com um sorriso no rosto, enfrenta as dificuldades com fé em Deus. Sem cliente para comprar suas mercadorias, vai diariamente à loja apenas para encontrar os velhos amigos e pôr a conversa em dia. “Passei a maior parte da vida aqui. Vir para cá acaba sendo um lazer.”

Vendedor de santo reza para as coisas melhorarem

“Oxalá” é como é conhecido o comerciante Ademar da Silva Figueira. O apelido tem tudo a ver com sua profissão: vende imagens de santos, velas, produtos para banhos e trabalhos de umbanda.

Apesar de conviver diariamente com todos os santos, “Oxalá” não conta com grande proteção para ampliar seus negócios. Como a maioria dos comerciantes, também passa por dificuldades com a escassez de clientes. “A procura já foi boa, mas o comércio está decadente”, lamenta.

O que salva o ganha-pão de “Oxalá” é que muitas pessoas, quando se sentem em dificuldades, procuram sua loja para encontrar ajuda nas imagens e nos produtos existentes. Também há uma freguesia fixa de pais e mães-de-santo que têm seus terreiros.

Como muitos, ele herdou o ponto do pai. Também como os demais, reclama da falta de apoio das autoridades e de companheiros que tinham até dez lojas na praça e inviabilizaram melhorias quando foi proposta pela prefeitura de Rio Branco, em 1997.

Para tentar conseguir força, ele diz que reza. Suas orações, diz, quase sempre são atendidas. O problema é que as forças divinas nem sempre caminham juntas com a vontade dos homens. É disso que ele reclama: “Os santos ajudam, mas os homens fazem questão de dificultar tudo”.

Hora do almoço, a movimentação aumenta

São muitas as pensões dentro da Praça da Bandeira. O cardápio entre elas, no entanto, é praticamente o mesmo: arroz, feijão, macarrão, farofa e carne são servidos em prato feito a dezenas de pessoas que se movimentam pelos becos para almoçar. Preço médio de cada refeição: R$ 3,5.

Matéria publicada no jornal Página 20, no dia 07/11/2003

 

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