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MARINA SILVA: O QUE VEM DEPOIS DO FIM DO MUNDO?

POR MILLY LACOMBE

Dispa-se das certezas que você tinha a respeito dela. Em entrevista à Tpm, a ambientalista fala sobre a infância na floresta, aborto, crise climática, feminismo e fascismo

A ausência de futuro parece já ter começado. Para todos os lados que a gente decida olhar o que se vê não é bom. Desemprego sem precedentes. Crise climática. Feminicídio em números históricos. Genocídio da população negra periférica escalonando. Pandemia. Só que existem aquelas e aqueles entre nós que já passaram por fins de mundo antes. E sobreviveram.

Os descendentes dos povos escravizados e dos povos originários, as mulheres e os LGBTQ: já houve genocídios e pandemias antes – e renascimentos. Talvez essa seja, portanto, a hora de escutar o que as pessoas que insistem em existir têm a ensinar sobre sobrevivência em tempos brutos.

Marina Silva se define como negra e ambientalista. Tem sangue indígena, nasceu em um seringal no Acre, teve 10 irmãos e sobreviveu a três hepatites, cinco malárias, uma contaminação de mercúrio e uma leishmaniose. Sua história, se fosse contada como ficção, seria inverossímil. Mas a diferença entre ficção e realidade é que a ficção precisa fazer sentido, e a realidade não.

A jornada de Marina não faz sentido. Porque não há sentido em ver uma epidemia trazida pelo homem branco levar o tio que te criou, sua mãe e duas irmãs. Não faz sentido ter que assistir sua casa e suas coisas serem incendiadas pela defesa civil. Não faz sentido ser criança e ter de trabalhar.

Só que a vida pode mudar na velocidade com que lemos um cartaz displicentemente pregado na porta de uma igreja. O cartaz que mudou a vida de Marina Silva quando ela se preparava para ser freira falava de uma reunião de sindicalistas em Rio Branco, capital do Acre, e levou a garota que estava quase se ordenando até o seringueiro e sindicalista Chico Mendes – um encontro que mudaria completamente o curso do rio da sua vida.

Marina então desiste de ser freira, começa uma vida de estudos, se forma em história na Universidade Federal do Acre, elege-se vereadora, depois deputada, é indicada como ministra do meio ambiente por Lula e se candidata a presidente da república em três eleições consecutivas. Na segunda delas vê sua candidatura derreter: começa a campanha com quase 17% de intenção de votos e termina com 1%. Os motivos são especulados: desde 2014 tem sido criticada por fazer alianças políticas bastante questionáveis – mas, se eliminarmos da política aqueles que fizeram alianças questionáveis, sobram só móveis e utensílios em Brasília. Então não pode ser isso. 

Outras explicações dizem respeito à rejeição por ser evangélica, e essa desaparece se pensarmos na eleição do atual mandatário. Há os que acreditam que ela é tratada de forma injusta pela imprensa, e há aí boa margem para debate porque Marina aparece bastante quando fracassa, mas nem tanto quando brilha. 

Você sabia, por exemplo, que ela recebeu o maior prêmio da ONU na área Ambiental, o Champions of the Earth? Ou que é renomada mundialmente por sua luta ambientalista e foi escolhida pelo The Guardian como uma das 50 pessoas que podem salvar o planeta? Mas certamente sabe que, por ser evangélica da Assembleia de Deus, ela se opõe ao aborto e que deu as mãos a Aécio Neves contra Dilma Rousseff em 2014.

A carta da religião também tem espaço para um debate maior, até porque não existe apenas uma forma de ser evangélico, assim como não existe apenas uma forma de ser católico. São católicos, por exemplo, o governador de São Paulo João Doria, que pensou em alimentar morador de rua com ração e dispersou a população da Cracolândia com bombas e demolições em uma operação realizada em 2017, e o padre Julio Lancellotti, que faz um incansável trabalho de acolhimento com a população de rua da capital paulista. Existe, inclusive, uma bancada evangélica de esquerda que defende, entre outras coisas, o estado laico e o direito ao aborto. Assim, do mesmo jeito que ser católico não define uma pessoa, ser evangélico também não deveria. 

Então por que Marina é tão rejeitada?

Nessa entrevista talvez você encontre pistas, mas, mais do que isso, talvez dispa-se de algumas certezas que tinha a respeito dela. Aos 62 anos, Marina e sua fala mansa levam a gente ao interior da floresta onde nasceu, passam pelo convento onde quase se ordenou freira e pelas poesias que compõe e desaguam num oceano de reflexões sobre a forma como vivemos e nos relacionamos nos dias de hoje. Taxação de grandes fortunas, aborto, crise climática, feminismo: ela não se recusa a falar a respeito de coisa alguma.

Dois casamentos, quatro filhos, um neto. Marina Silva pode ser tudo, menos fraca ou covarde. E quando dizem que ela não está preparada para liderar uma nação, a pergunta talvez seja a oposta: será que essa nação está preparada para uma liderança tão feminina e potente como a que ela poderia exercer? 

Tirem suas conclusões.

Tpm. O que vem à sua cabeça quando você pensa na floresta? 

Marina Silva. Ela era o nosso abrigo, era da onde a gente tirava sustento. Uma mistura de mistério com dura realidade. Eu diria que, mesmo em meio a tanta crueza e tanta dureza, tenho muito mais beleza para recordar. Meu primeiro encontro com a dor da natureza – ou com alguma coisa nesse sentido – se deu quando eu era criança. Minha mãe queria fazer uma cama, uns bancos e uma mesa e pediu para o meu pai tirar um pé de cedro. O cedro é uma árvore que tem muita seiva e é uma seiva cor de sangue. Para poder tirar o cedro de machado você precisa primeiro sangrar a árvore. Um dia fui buscar água no igarapé e, quando passei pelo cedro, a árvore estava toda ensanguentada. Fiquei apavorada e peguei umas casas de cigarra feitas de argila branca, mole ainda, e fui botando nos cortes. Enquanto fazia isso eu ia dizendo para a árvore: “Você vai ficar curada, eu estou passando penicilina em você”, que era o único remédio que a gente usava, o único que os patrões mandavam. Na semana seguinte, meu pai viu a árvore cheia de barro. Ele perguntou: “Quem foi que fez isso?”. Eu falei: “Estava saindo muito sangue dela e eu passei penicilina”. Meu pai fez um olho que misturava espanto e tristeza. Ele falou: “Agora não tem mais jeito, ela já morreu, não tem mais seiva, não tem mais nada”. Isso foi muito forte. Quando eu me lembro da floresta, não é apenas a mata, são muitos animais, insetos, árvores, muitas texturas, cores, aromas, sons. O ruído da cigarra ao cricrilar dos grilos, o canto exagerado dos jacus dizendo que “tá ruim, tá ruim, tá ruim”, o canto do inambu dizendo “venha cá, por favor, venha cá, por favor”, da siricora dizendo “três cocos, três cocos, três cocos”. Era um imaginário que eu ia criando de uma conversa. É uma linguagem de quem aprende a olhar, ouvir e compreender a floresta.

Você falou ‘os patrões’; quem eram os patrões? Os seringalistas. O seringal é uma unidade de produção, geralmente com umas 200 famílias que têm unidades produtivas isoladas na mata. A menor distância da nossa casa para a mais próxima era de 1 hora e 45 minutos andando pela floresta. São distâncias muito grandes porque são 200 famílias com medidas entre 200 e 500 hectares cada uma. As árvores de seringas e as castanheiras nascem naturalmente no meio da floresta, mantendo uma certa distância uma da outra. Desse modo, para você poder ter uma unidade de produção que viabilize uma produção razoável por família e ainda dê lucro para o patrão, um seringal precisaria ter entre 900 e 1.000.000 hectares – ou até mais. Os patrões eram os donos dessa grande empresa extrativista para a qual os seringueiros trabalhavam num regime de semi-escravidão. Eles tinham a exclusividade da venda dos manufaturados para o seringueiro e a exclusividade da compra do produto, que era a borracha. O preço da borracha era sempre muito barato, o preço das mercadorias sempre muito alto e, quando eu digo que a gente tinha uma agricultura de subsistência, é porque os patrões não queriam que você botasse roçado – quanto menos você produzisse, mais era obrigado a comprar da casa aviadora, que também era do patrão. Nesse lugar tinha muita dureza, muita crueza e um seringueiro estava sempre devendo. Mas, ao mesmo tempo, tinha muita solidariedade entre essas famílias. A gente tinha uma linguagem própria.

Veja a entrevista completa aqui.

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